Bruxaria: a mulher e a natureza

Bruxaria: a mulher e a natureza

Recuperação da figura de bruxa é resgate do papel feminino na estrutura social e do conhecimento

Foto Shutterstock.com (por Zharinova Marina)

Na Idade Média a Inquisição silenciou hereges e feiticeiros, acusados de crimes contra a fé católica. E também mulheres que antes protagonizavam o imaginário popular como símbolo de conhecimento natural, da cura e da magia. Assim, uma sabedoria que atravessou o tempo foi silenciada. Agora, porém, percebe-se o renascimento de práticas de cura associadas a um contato estreito com a natureza, parte de um movimento de recuperação de símbolos antigos da dignidade e sabedoria feminina, analisa Julia Myara, mestre em Filosofia Antiga pela PUC-RJ.

“A recuperação da figura da ‘bruxa’, não como um ser demonizado e maligno, mas como uma mulher com contato estreito com a natureza e com o próprio corpo evoca um antigo vínculo entre as mulheres, as práticas de cura, a vida comunal e a natureza. Essa relação parece expressar uma recuperação dos laços com o mundo natural e com o papel fundamental das mulheres na estrutura social e nos saberes”, diz Julia, que dará curso online sobre o tema na Casa do Saber Rio. Veja a entrevista com Myara:

Ao longo da história, a figura feminina esteve ligada ao cuidado e manutenção do vínculo com a natureza, ocupando o imaginário popular como símbolo de cura e conhecimento. Mas, com o tempo, mulheres que dominavam esse conhecimento natural passaram a ser vistas como bruxas. Como e por que isso ocorreu?

Existem diversas explicações possíveis para esse fenômeno. Uma delas, sustentada pela pesquisa de Silvia Federici na obra “O Calibã e a bruxa”, afirma que o fenômeno da Inquisição e do controle dos corpos e sabedoria das mulheres está intimamente ligado com os eventos que diminuíram a população europeia no fim da Idade Média e começo da Modernidade. Dessa forma, o capitalismo nascente, sustentado solidamente pelo patriarcado, empreendeu uma política de estado organizada de perseguição e controle das mulheres. Como resultado dessa perseguição, o conhecimento sobre cura e medicina natural historicamente associado às práticas femininas foram “demonizados” e as mesmas perseguidas como bruxas e feiticeiras, violentamente forçando um espaço para um tipo diferente de saber e de modo de vida.

Que impacto teve a Inquisição no desenvolvimento dessa ciência (ou “bruxaria”, como preferem os detratores)?

A Inquisição é um fenômeno histórico-político associado a diversos outros, tais como a solidificação do sistema capitalista, o desenvolvimento do pensamento moderno, o racionalismo, enfim, o que hoje compreendemos como as estruturas da nossa civilização. Objetivamente, a Inquisição matou pessoas, homens e mulheres, hereges, bruxas, feiticeiras. Além da violência praticada contra determinados indivíduos e grupos de pessoas, a Inquisição deve um papel fundamental no apagamento de determinadas sabedorias historicamente associada ao papel social das mulheres. A Inquisição foi peça chave para o silenciamento e apagamento da história das mulheres.

Ainda hoje há quem faça relação entre bruxaria e curas a partir de elementos naturais? Por que isso ocorre?

O renascimento das práticas de cura associadas a um contato mais estreito com a natureza e com o mundo natural faz parte de um grande movimento de recuperação não só dessas práticas, mas de símbolos antigos da dignidade e sabedoria femininas. A recuperação da figura da “bruxa” não como um ser demonizado e maligno, mas como uma mulher com contato estreito com a natureza e com o próprio corpo evoca um antigo vínculo entre as mulheres, as práticas de cura, a vida comunal e a natureza. Essa relação parece expressar uma recuperação dos laços com o mundo natural e com o papel fundamental das mulheres na estrutura social e nos saberes.

Em dias de polaridade política e radicalismo religioso como os atuais, vivemos o risco de uma nova caça às bruxas?

Certamente. Se alargarmos o entendimento do termo “caça às bruxas” a todas as minorias historicamente e atualmente perseguidas, podemos perceber que nossa realidade expressa determinados afetos historicamente associados a perseguição de grupos, povos e práticas que não se enquadram nos afetos vigentes de uma sociedade conservadora, normativa e violenta. A caça às bruxas é um exemplo de como uma sociedade pode perseguir por séculos, determinado grupo com o objetivo de dominá-lo e usurpar sua sabedoria. O renascimento dos símbolos das bruxas e sua sabedoria natural é a prova de como se opera uma potente resistência.

De que forma a bruxaria está ligada ao sagrado feminino e ao conceito de empoderamento?

Essa é uma pergunta delicada, pois o conceito de empoderamento ficou bem esvaziado de sentido. Na minha visão, nenhuma mulher se empodera sozinha. Ninguém se empodera sozinho. Nós somos seres comunitários e nossas vitórias são comunitárias. Um indivíduo que conquista algo de especial e importante em sua vida, ainda que o faça de uma maneira bela, não necessariamente liberta seus iguais das opressões estruturais. Dessa forma, a bruxaria, como resgate dos símbolos da sabedoria das mulheres e suas práticas de resistência empoderam enquanto articulam um comum entre mulheres. Se, na recuperação desses símbolos e afetos, as mulheres se organizarem e se entenderem como uma coletividade, lutando por direitos, criando redes de apoio, fortalecendo laços de respeito e amizade, penso que um verdadeiro empoderamento pode acontecer. Sobre o sagrado feminino, acredito que seja um fenômeno religioso interessantíssimo, de recuperação dos antigos símbolos das religiões que cultuavam a grande Deusa. Se nós, seres humanos, somos contadores de histórias, e se parte das nossas histórias envolvem a dimensão do sagrado na existência, penso ser interessantíssimo o retorno da adoração de uma grande divindade feminina.

Serviço:

Casa do Saber Rio

Site: rj.casadosaber.com.br